Viernes, 26 de abril de 2024
 
Quando o candidato-seminarista não tem o perfil
 
Considerações para nossa realidade da vida consagrada e sacerdotal, pelo Frei José Lorenzo
 

Faço algumas considerações para nossa realidade da vida consagrada e sacerdotal, principalmente olhando a questão da seleção vocacional e do acompanhamento formativo. Fui provocado e inspirado pela leitura do artigo de Antonio Carlos Lopes, diretor da Escola Paulista de Medicina da Unifesp e presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, que escreveu uns dias atrás uma matéria sobre “quando o aluno não tem o perfil para Medicina”.

Inicio a minha reflexão citando um trecho do Decreto Geral Legislativo sobre a admissão de egressos ao seminário, mostrando algumas consequências da aceitação de candidatos que não tem o perfil exigido pela Igreja:

“A não observância de tais recomendações tem conduzido à disparidade de critérios e de comportamentos que prejudicam o clima de fraterna colegialidade e confiança, não só entre os bispos, mas também entre todos os responsáveis da formação presbiteral.

Tal prática tem encontrado na escassez do clero sua principal motivação, porém não sem danos à realização humana e cristã do próprio candidato, à imagem da Igreja e ao povo de Deus. É de conhecimento geral o contra testemunho de presbíteros que, por não apresentarem as mínimas condições para o exercício do ministério, provocam continuamente escândalos amplamente divulgados pela mídia. Isto tem prejudicado a Pastoral Vocacional e a auto-estima dos presbíteros. Já se tornou comum nas empresas o programa que busca a qualidade total de seus quadros, respondendo aos anseios da sociedade moderna. Desafio mais grave tem a Igreja para corresponder às exigências de maior qualificação e competência de seus ministros. Isto implica num crescente cuidado com os critérios de seleção e acompanhamento dos candidatos”. (CNBB, “Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil” p. 196-197).

Estão chegando a nossos seminários, candidatos, seminaristas com uma estrutura de personalidade muito frágil, com motivações insuficientes e inadequadas e com muitas limitações. Eles mostram muitas dificuldades para entender e abraçar um projeto exigente como é o da vida religiosa e sacerdotal.

Pelas informações e dados que estamos recebendo, constatamos uma verdadeira crise anunciada, na qual já estamos em parte mergulhados, que inclui, entre outros elementos, acolhida indiscriminada de candidatos, flexibilização do processo formativo e do discernimento vocacional, chegando, às vezes, a uma profissão solene e ordenação sem exigir uma comprovação positiva de tudo aquilo que a Igreja pede.

Estou me lembrando de uma historinha que trabalhei a semana passada com os seminaristas que eu acompanho:

O mestre zen encarregou o discípulo de cuidar do campo de arroz. No primeiro ano, o discípulo vigiava para que nunca faltasse a água necessária. O arroz cresceu forte, e a colheita foi boa. No segundo ano, ele teve a ideia de acrescentar um pouco de fertilizante. O arroz cresceu rápido, e a colheita foi maior. No terceiro ano, ele colocou mais fertilizante. A colheita foi maior ainda, mas o arroz nasceu pequeno e sem brilho. “Se continuar aumentando a quantidade de adubo, não terá nada de valor no ano que vem”, disse o mestre. “Você fortalece alguém, quando ajuda um pouco. Mas você enfraquece alguém, se ajuda muito”.

“A Igreja, geradora e educadora de vocações, tem o dever de discernir a vocação e a idoneidade dos candidatos ao ministério sacerdotal. De fato, “o chamamento interior do Espírito precisa ser reconhecido como autêntico chamamento pelo Bispo”. (Orientações para a utliziação das competencias psicológicas na admissão e na formação dos candidatos ao Sacerdócio, nº 1)

O resultado desse cenário costuma ser um consagrado, padre com formação deficiente, com uma estrutura de personalidade frágil e uma dinâmica psíquica voltada para satisfações pessoais conflituosas, além de um discurso religioso e vida espiritual a serviço de inconsistências pessoais.

Para ser um religioso e/ou um padre, além da disposição para enfrentar com realismo as exigências, desafios, dificuldades e frustrações que costuma gerar esse projeto de vida celibatária, são necessárias características especiais. É fundamental levar em conta algumas qualidades que reiteradamente nos falam os documentos da Igreja:

“Para a aceitação de um candidato ao ministério presbiteral não basta seu desejo, ainda que grande e motivado. A vocação divina manifesta-se pela existência daquelas qualidades, sem as quais o exercício de múnus sagrado não só não será eficaz, mas prejudicará o povo de Deus.

Destacam-se entre elas: a sinceridade e verdade, a fidelidade ao compromisso assumido, o equilíbrio psíquico e a maturidade afetiva e sexual, a retidão no perceber e julgar os acontecimentos, o espírito de criatividade e iniciativa, o relacionamento positivo e aberto para com os outros, com capacidade de convivência comunitária e trabalho em conjunto, a facilidade em aceitar as legítimas decisões da autoridade e da comunidade, o espírito de oração, o zelo pastoral, o sentido de Igreja universal e local e a comunhão com os legítimos pastores, a saúde física e a capacidade de aprendizagem do currículo mínimo exigido para a ordenação presbiteral” (CNBB, “Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil” p. 198-199)

“Elas vão desde o equilíbrio geral da personalidade até à capacidade de carregar o peso das responsabilidades pastorais, desde o conhecimento profundo da alma humana até ao sentido da justiça e da lealdade.

Algumas dessas qualidades merecem particular atenção: o sentido positivo e estável da própria identidade viril e a capacidade em relacionar-se de modo amadurecido com outras pessoas ou grupos de pessoas; um sólido sentido de pertença, fundamento da futura comunhão com o presbitério e de uma responsável colaboração com o ministério do bispo; a liberdade em entusiasmar-se por grandes ideais e a coerência em realizá-los nas acções de cada dia; a coragem em tomar decisões e de permanecer fiel a elas; o conhecimento de si, das suas qualidades e limitações, integrando-as num apreço de si diante de Deus; a capacidade de se corrigir; o gosto pela beleza entendida como “esplendor da verdade” e a arte em reconhecê-la; a confiança que nasce da estima pelo outro e que leva ao acolhimento; a capacidade do candidato em integrar, segundo a visão cristã, a sua sexualidade, inclusive na consideração da obrigação do celibato. (Orientações para a utliziação das competencias psicológicas na admissão e na formação dos candidatos ao Sacerdócio, nº 2)

Por isso, talvez seja muito arriscado e inconveniente permitir a entrada de candidatos a nossos seminários sem uma avaliação rigorosa e séria. Atuando sem levar em conta critérios objetivos, é grande a probabilidade de entregarmos a prática do múnus sacerdotal a indivíduos com as mais distintas fragilidades.

Atualmente, mesmo com processos de seleção vocacional mais ou menos bem feitos, sempre nos deparamos com candidatos que passam pela seleção, mas que não têm o perfil adequado para a vida religiosa e sacerdotal. Às vezes encontramos depoimentos de formadores que testemunharam, não sem algum constrangimento e sentimento de culpa, como o seminarista foi se arrastando pelas diferentes etapas de formação, chegando inclusive a ser admitido para a profissão solene e para a ordenação. Porém, nos primeiros anos após a ordenação, quando é impelido a conviver no cotidiano o projeto da vida consagrada e sacerdotal exercendo o seu ministério e ao se deparar com as exigências e as frustrações, a sua estrutura psicológica nem sempre consegue ficar em pé e acaba desabando de uma maneira ou de outra.

Tenho a impressão que em não poucas vezes, desde o início da relação entre o candidato e a instituição há uma idealização recíproca que impede de ver a realidade tal como ela é. Com o decorrer dos anos, essa realidade pessoal e institucional acaba se impondo e nem sempre é agradável tomar consciência disso. A frustração costuma vir depois da idealização e para dar conta da frustração e se familiarizar com o inevitável da condição humana, há necessidade de um mínimo de estrutura psíquica.

“As vocações adultas exigem uma atenção especial. Antes de serem assumidos para o início do processo formativo no seminário ou em outra modalidade aprovada pelo bispo, os vocacionados adultos sejam seriamente ajudados a refletir sobre as reais motivações de sua vocação. Deve haver um cuidadoso discernimento vocacional[1], atento à dinâmica e à estrutura da personalidade, às vezes com áreas fragmentadas e traços distorcidos, em geral silenciados, porque não tão facilmente visíveis. Seja considerado igualmente o descompasso entre as motivações declaradas e suas motivações inconsistentes, tais como: fuga de compromissos estáveis com o casamento e a família; problemas de identidade sexual; desilusões amorosas; despreparo para enfrentar a dura realidade do mundo do trabalho e do mercado; busca ilusória de segurança e bem-estar na vida de padre; fascínio pela figura social do padre; busca de honras presumidas na função de padre” (CNBB, “Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil”, nº 114 p.60-61)

Quem não tem vocação para a vida religiosa/sacerdotal e também não tem as mínimas condições, acaba abandonando esse tipo de vida, deixando, não poucas vezes, um mal estar dentro da própria instituição.

Para evitar tantos problemas advindos da deficiência da seleção vocacional e do processo de formação, o ideal seria que os candidatos e formandos fossem acompanhados e avaliados de uma forma integral e com mais seriedade. Na vida sacerdotal e religiosa não lidamos com máquinas, mas com seres humanos concretos e históricos. Esse elemento é essencial e deve ser levado em conta para não cair em expectativas ilusórias.

A Igreja, a nossa Ordem talvez não precise de tantos religiosos e sacerdotes. Precisa, sim, de bons religiosos e bons sacerdotes. E selecionar bem e formar adequadamente os futuros religiosos e sacerdotes é primordial para mudar a preocupante realidade da vida consagrada e sacerdotal da nossa Igreja e da nossa Ordem.

Paralelamente, é necessário potencializar uma política institucional que favoreça a oportuna renovação e qualificação de seus membros de tal modo que possam desempenhar as diversas funções encomendadas com competência e credibilidade. Aí, sim, talvez alcancemos o que sempre sonhamos.

Maringá, 25 de setembro de 2012

Fr. José Lorenzo Gómez


[1] A vocação é condição para assumir o ministério presbiteral. Isto significa que ninguém pode arrogar-se o direito de escolher o ministério de presbítero, com base unicamente em suas aspirações. A avaliação da autêntica vocação deve levar em consideração as aptidões objetivas do candidato, a livre determinação da vontade na opção vocacional e as motivações conscientes e inconscientes da vocação. (CNBB, “Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil”, nº 103)